domingo, 28 de dezembro de 2008

Cada porta, cada janela

por Lucas Cardim

Limeirinha é um bairro periférico em uma cidade minúscula numa das regiões mais pobres de um país da América Latina. No alto de um dos morros do bairro, avista-se meio mundo de casinhas com paredes descascadas e portas de madeira. Dentro de cada casa tem uma história, uma pessoa e uma vida que começa bem antes da porta ser aberta e se encerra bem depois das janelas se fecharem. Na casa 131, sentada com o cansaço de uma asma, Dona Salete, 54 anos, observa a rua vazia.

Veio parar em Limeirinha muito nova, nasceu em Igapó mas, de rebolada pelo mundo, parou dentro da Paraíba. A casa de Dona Salete é tão apertada quanto os seus pulmões. Em meio aos três cômodos, pilhas de sucata se amontoam esperando uma utilidade que não chega tão cedo. Radiolas Grundig, toca-fitas quebrados, pneus velhos, porta de carro e um sem mundo de lixo que, variando de um fogão azul enferrujado até a cabeça careca de uma boneca, incomodam os pouquíssimos espaços que sobram na casa. O cheiro de uréia é forte. Aos fundos, em um quintal de três metros quadrados, oito sacos abarrotados de plástico dividem espaço com o forno à lenha.

Maria Salete dos Santos acorda cedo, quando tem comida come um pão com café e sai pelos lixos da cidade de Picuí atrás de plástico. Cada pedaço de plástico demora em média 250 anos para desaparecer no ambiente mas ela sabe que, ou vai rápido, ou não encontra nada para catar. Em Picuí, caçar tambor -como dizem- é profissão concorrida que não remunera bem. No calor do sertão, enquanto frita suas retinas debaixo do sol, Dona Salete troca 10 quilos de plástico por um real e cinquenta centavos que podem dimuir dependendo da cotação do caminhão que vem comprar. Por mês, junta, sem fôlego, 20 sacos abarrotados. Cultiva um efizema de décadas de cigarros baratos, como o U.S., que custa 12 quilos de plástico o maço.

Dona Salete nunca foi ao colégio. Nem cresceu na roça. Passou a vida, desde que se entende por gente, trabalhando em meio ao sol, fazendo bicos no açougue em troca de mistura (carnes de terceira moídas), cortando lenha, lavando roupa, catando lixo. Cria um dos netos, Zé Pedro, ficando com vinte dos trinta reais que o bolsa família paga. Os outros dez reais ficam com a mãe do menino que toma conta de mais dois filhos e seus respectivos benefícios. Zé tem seis anos e a merenda do colégio faz diferença. Embora tenha no dia, Salete afirma que por vezes falta o que comer em casa. Zé Pedro não sabe ler nem escrever de verdade, desenha apenas nome mas não faz mal, é muito novo. Sua mãe, aos 20 anos, não desenha o nome. Nem escreve.

Dona Salete não deixa o neto faltar a escola nem quando ele está doente. O menino precisa estudar e comer. Cuscuz com leite, assinar o nome, são coisas que - embora paliativas para a alimentação e a educação - têm uma importância tão grande quanto inocente para um rosto marcado pela pobreza. Se ela é feliz, não responde, vai se arrumar para catar plásticos. Entra em casa, fecha a porta.

foto: Lucas Cardim


Picuí, Paraíba, Brasil. 17 de dezembro de 2008.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Fotos da Caravana Selo UNICEF

por Sandokan Xavier

Veja as fotos tiradas por Sandokan Xavier em quatro cidades da Caravana Selo UNICEF:




Impressões

Por Caio Azevedo

Apitos, multidão, crianças, professores, autoridades, fogos, explosões, carro de som, "...está chegando a...", chuva, correria, tempo, sol, paralelepípedo, Colégio Pequeno Príncipe, Princelétrico, cachorro quente do Amigão, Novogás, Jadiel 14, canteiro de flores, canteiro de obras, Toyota, olhares, sandália de couro, velhos sentados conversando, crianças correndo, jovens conversando, cachorro latindo, adultos observando, Maria presentes, lan house W&W, casario, janelas abauladas, banda tocando, estrela de Davi, estrela de cinco pontas, pisca-pisca apagado, senhora na janela, mercadinho popular, mototáxi, salão do Carlos, Michael's center, concessionária Honda, Merla presentes, casa Santa Terezinha, carro de som parando, menino colocando cadeiras, pessoas sentando, praça Estácio Coimbra, lotada, casinha verde, Almeida e Nascimento Distribuidora, janelas e portas fechadas, havaiana na mão, grades cinzas, palanque, whisky, meninos espiando levantam o pano, pró jovem adolescente, camisa do Brasil, boné azul, vestido verde, mercadinho Cesta do Povo, lojinha Agapê, silêncio, rua vazia, carroça parada, estátua do padre Cícero, faixa de grande liquidação de calçados, Igreja beje, praça verde desbotada, grama rala, missões Frei Damião, farmácia, ponte, armazém Dom Bosco, lojinha de bicicletas, carroça andando, banquinhos, praça lotada, palhaço, "...quem está feliz, levante a mão...", atrações, dança, chafariz desligado, azul piscina, menina de óculos e magra molhando os pés na fonte, sandália prateada, pitó verde, bêbado do Sport, senhora de guarda chuva na mão, jovem de moicano, forró, discurso, "...pela segunda vez consecutiva...", Glamour Fashion, óculos aro tartaruga, vestido florido, calça jeans, "...suco gelado, cabelo arrepiado...", papai noel, Cinevideo locadora, sorveteria Sabor Melhor, Estrela turismo, casinha simpática, colorida, criança correndo, toca!, escola Turma da Mônica, luzes, "... é o A, é o B, é o C...", árvores com cal, coral terceira idade, churros, Menino correndo, pára, olha-me curioso, Renildo, nove anos, quarta série, quer ser motorista, tem enjôo no ônibus da Caruaruense, queimadura no braço assando castanha, a mãe vende doce, Outro menino toca nele, "não vale", "estuda onde?", "Sizinando", "como?", "Sizinando", "não entendi, como escreve?", "G-U-I...", "repete", "sei mais não", abaixa a cabeça, "vai brincar mais de toca, não?", "vou" e corre, "é quem?"

São Caitano, Pernambuco, Brasil. 11 de dezembro de 2008.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Igaci

por Camila Lima

Sol forte e longa caminhada para chegar à praça de Igaci. A banca marcial animava o percurso e era puxada por Lourenço. Ele marchava imponente. Sem parar. Posava para fotos e acenava para os conhecidos. Enquanto a banda fazia um intervalo, simpático e carinhoso, aproveitava para conversar com os amigos e beijar as amigas.

Lourenço afirma que suas matérias preferidas são português, matemática, estudos sociais, cultura brasileira, religião, ciências e geografia. As professoras dizem que ele é um bom aluno, seu “problema” é ser comunicativo demais. Conversa a aula inteira e admite, sorrindo, que falta muitas aulas, mas está sempre presente nos ensaios da banda. “Se ele não tiver, a banda não toca. Na verdade, não tem nem ensaio. Ele liga para todo mundo avisando que foi cancelado”, conta Rodrigo, o professor de música.

Lourenço tem 31 anos e faz a 5ª série do ensino fundamental. Estuda no Colégio Cenecista Monsenhor Macedo há 21 anos. Adora os amigos da escola. E fez questão de tirar foto com todos que estavam por perto. De um por um.

Lourenço é atencioso com as pessoas que conversam com ele e não descansa enquanto não descobre a resposta de uma pergunta que lhe fazem.

foto: Camila Lima


Igaci, Alagoas, Brasil. 10 de dezembro de 2008

Rua

por Lucas Cardim

A rua Frei Damião tem 40 casas, nenhuma curva e 29.866 pedras que se apertam até desembocarem no nada, de frente para a serra que separa Poço Dantas do Ceará. Perto do nada, quatro gerações de mulheres – inteligentes, bem humoradas e pobres – dividem o analfabetismo sistemático do nordeste brasileiro, causado pela pobreza e má qualidade do ensino. Ticinha, sorridente, revela que vai ao colégio diariamente mas não sabe ler aos oito anos. Tem aulas de português, matemática, ciências e geografia sem conseguir ao menos escrever a palavra educação. Sua família mora no sítio da Baixa Verde, localizado a três reais de moto ou cinco de carro. Como a comida lá é sempre a mesma, arroz e sardinha, prefere a casa da avó. Fim de ano a menina sempre vai com os sete irmãos ficar na cidade, tem almoço melhor na casa de dona Josefa.

Lúcia é a filha de Josefa. Largou a escola na sétima série mas nunca soube ler. "Desenho meu nome a pulso", confessa com um sorriso amarelo. Josefa nunca foi à escola, trabalhou plantando toda a vida até conseguir uma aposentadoria há pouco tempo. Na cama, cega aos 93 anos, repousa dona Izabel. A única escola que teve foi a roça, diz em voz quase muda.

Junto de Ticinha, suas duas irmãs mais novas, Taísa e Tamara, brincam pela casa. Tímidas, ainda são muito novas para frequentar a escola. Mais atrás, perto da praça, nas mesmas pedras da Rua Frei Damião, José Flávio Gomes de Freitas, sete anos, se diverte. Perguntado se sabe escrever, responde brabo: "Claro!". Atendendo o pedido, pega a caneta, escreve o nome e fala da escola e do PETI (Progama de Erradicação do Trabalho Infantil). Vai para o colégio de manhã, tem aulas de português e matemática. Ao PETI vai de tarde, joga bola, faz arte e resolve as tarefas da escola. Prefere o segundo, lógico, diz sorrindo com suas janelinhas. Cercado por amigos, todos querem dar seus autógrafos. Adoram brincar, freqüentam as aulas. Sabem, de fato, escrever. Sem que se pergunte mais, desfilam cálculos matemáticos simples como 3 + 5 = 8 e falam de novo do jogo de bola, das aulas de artes, das tias. É o lado bom das porcentagens, bem perto de Ticinha e sua família.

foto: Lucas Cardim


Poço Dantas, Paraíba, Brasil. 10 de dezembro de 2008.

Edvaldo e os Cremosinhos

por Caio Azevedo

Na Praça São Sebastião, em Bonito, uma tarde de quarta-feira avança. Idosos conversam nos banquinhos que a sombra das árvores protege; o comércio segue com o movimento sossegado; os ruídos dos carros se sobrepõem, por vezes, ao silêncio do vento; José Dias, 64 anos, externa sua revolta: o governo não paga a aposentadoria que ele merece, recebe apenas três salários mínimos quando deveria receber seis, já que, durante 34 anos e nove meses, contribuiu com esse valor para a Previdência; Edvaldo anda com sua carrocinha na tentativa de vender Cremosinho. O calor aumenta nos últimos meses do ano, é boa a época para vender sorvete de iogurte.

Ao passar de uma hora, a figura da praça muda: bandas começam a tocar, o carro de som da rádio local chama gente, pessoas se aglomeram frente à tenda onde haverá a entrega do selo do UNICEF e diversas apresentações. Edvaldo prospera, a venda de Cremosinho aumenta. Sol, gente e sorvete é uma combinação lucrativa.

Edvaldo é um rapaz de 14 anos, ou melhor, menino. Baixo, moreno e atento a possíveis clientes. Entrou no ramo de vendas de Cremosinho há duas semanas apenas. Antes, ajudava o pai em um sítio, refazendo sulcos para o inhame. No entanto, faz dois meses que o pai se separou de sua mãe e partiu para as bandas de Ribeirão. Foi para trabalhar com o pai que Edvaldo parou de estudar esse ano. Parou na sexta série, mas garante que volta a estudar próximo ano. Resolveu vender Cremosinho para ajudar a mãe e as duas irmãs mais novas. Seus dois irmãos mais velhos também trabalham para ajudar em casa. Um deles tem 17 anos, trabalha em Caruaru e continua a estudar a sétima ou oitava série. O outro tem 19, faz bicos em Bonito e parou de estudar na sexta série.

Edvaldo trabalha de sete a oito horas por dia e não ganha muito. “Tiro dez centavos de cada [Cremosinho]. Tem vezes que vendo a 60 centavos, aí tiro vinte”, afirma. Vende de 20 a 30 unidades por dia, ou até 40, em dias melhores. Fazendo as contas, no fim do dia, ele ajudou em casa com dois a quatro reais, ou quatro a oito Cremosinhos. Quando crescer, ele quer ser professor de luta. “Capoeira, caratê... ou muay thai, é assim né? Só não gosto de judô”. Porém, a escola de judô de Bonito se destaca: uma bonitense ganhou esse ano o campeonato Norte-Nordeste e o grupo se apresenta nessa tarde de quarta. "Não gosto desses agarra", diz Edvaldo, categórico. Já treinou dois meses de capoeira na escola, mas as aulas pararam por lá. Conheceu muay thai num filme, Ong Bak, e gostou. “Usa cotovelo e joelho mais, né? É legal”, comenta. Se não for professor de luta, ele pensa em ser cantor de brega e arroxa. Diz que canta bem. Se não canta, ao menos não vende mal. Durante nossa conversa, vendeu seis.

Bonito, Pernambuco, Brasil. 10 de dezembro de 2008.

Santarém

por Lucas Cardim

"A vida aqui é dura, de doer pé e mão", diz seu Norberto de Oliveira. Sentado na frente de uma pequena casa em Santarém, descansa. Trabalha todos os dias nas terras de Geraldo Pinto. Se tira três sacos de qualquer coisa, um vai para o dono das terras. Quando criança, era preciso plantar com os pais e irmãos, acabou nunca sentando em um banco para ler e escrever. Seu Norberto é mais feliz em época de chuva: tira feijão suficiente para todos da família, troca o milho que sobra por óleo e fósforo. Nas épocas de seca, não faz nada. Lembra depois que vez por outra o prefeito o chama para trabalhar nas casinhas, construindo. O aluguel de onde mora é de trinta reais, dá uma risada quando perguntado se come carne.

Próximo dali, seus dois filhos brincam na chuva. Chutam a água que desce rápido a ladeira de paralelepípedos. O mais velho sabe mais ler que escrever, o mais novo – aos 8 anos – nem isso. Seu Norberto observa os meninos. Se vão ter uma vida melhor que a do pai, diz não saber. Por enquanto, pés e mãos, seguem brincando na chuva.

foto: Sandokan Xavier


Santarém, Paraíba, Brasil. 10 de dezembro de 2008.