quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Rua

por Lucas Cardim

A rua Frei Damião tem 40 casas, nenhuma curva e 29.866 pedras que se apertam até desembocarem no nada, de frente para a serra que separa Poço Dantas do Ceará. Perto do nada, quatro gerações de mulheres – inteligentes, bem humoradas e pobres – dividem o analfabetismo sistemático do nordeste brasileiro, causado pela pobreza e má qualidade do ensino. Ticinha, sorridente, revela que vai ao colégio diariamente mas não sabe ler aos oito anos. Tem aulas de português, matemática, ciências e geografia sem conseguir ao menos escrever a palavra educação. Sua família mora no sítio da Baixa Verde, localizado a três reais de moto ou cinco de carro. Como a comida lá é sempre a mesma, arroz e sardinha, prefere a casa da avó. Fim de ano a menina sempre vai com os sete irmãos ficar na cidade, tem almoço melhor na casa de dona Josefa.

Lúcia é a filha de Josefa. Largou a escola na sétima série mas nunca soube ler. "Desenho meu nome a pulso", confessa com um sorriso amarelo. Josefa nunca foi à escola, trabalhou plantando toda a vida até conseguir uma aposentadoria há pouco tempo. Na cama, cega aos 93 anos, repousa dona Izabel. A única escola que teve foi a roça, diz em voz quase muda.

Junto de Ticinha, suas duas irmãs mais novas, Taísa e Tamara, brincam pela casa. Tímidas, ainda são muito novas para frequentar a escola. Mais atrás, perto da praça, nas mesmas pedras da Rua Frei Damião, José Flávio Gomes de Freitas, sete anos, se diverte. Perguntado se sabe escrever, responde brabo: "Claro!". Atendendo o pedido, pega a caneta, escreve o nome e fala da escola e do PETI (Progama de Erradicação do Trabalho Infantil). Vai para o colégio de manhã, tem aulas de português e matemática. Ao PETI vai de tarde, joga bola, faz arte e resolve as tarefas da escola. Prefere o segundo, lógico, diz sorrindo com suas janelinhas. Cercado por amigos, todos querem dar seus autógrafos. Adoram brincar, freqüentam as aulas. Sabem, de fato, escrever. Sem que se pergunte mais, desfilam cálculos matemáticos simples como 3 + 5 = 8 e falam de novo do jogo de bola, das aulas de artes, das tias. É o lado bom das porcentagens, bem perto de Ticinha e sua família.

foto: Lucas Cardim


Poço Dantas, Paraíba, Brasil. 10 de dezembro de 2008.

2 comentários:

gilberto disse...

A expressão "três reais de moto ou cinco de carro" reflete a valoração que a população pobre do sertão nordestino atribui a alguns aspectos de seu difícil cotiano e nos leva questionar: Como alguém pode atribuir relevância ao aprendizado quando suas preocupações mais simples recaem nessa seara de valores?

E o mais grave é que tais situações não são vividas apenas por aqueles que se propõem a aprender, mas também por aqueles que se dedicam, às duras penas e sem qualquer preparo acadêmico continuado, a ensinar.

Êta brasilzão!

Gilberto Rios

Anônimo disse...

Lucas
parabéns pelo olhar e sensibilidade. Dá vontade de sair correndo para conhecer todas as pessoas e lugares. Parabéns!

É triste ver que esta realidade se repete em nosso semi-árido. Estive na entrega do Selo no RN e visitamos várias comunidades com o mesmo retrato mostrado por vc.

Mas acredito que estamos no caminho da mudança.

abç